sexta-feira, novembro 19, 2010

Amor e Medo

Hoje, quando vinha dirigindo de volta para casa, em meio ao caos tradicional do trânsito das 18hs, me ocorreu um pensamento, não novo, mas recorrente, e que evolui a cada instância em que me deparo com situações similares. Enquanto presenciava inúmeras demonstrações de falta de respeito, descaso, inexperiência, arrogância e irresponsabilidade, por grande parte dos motoristas, estava presenciando, de fato, um espetáculo da mais pura essência humana.

Me ocorre que -- e como já mencionei por diversas vezes -- o ser humano, em sua essência, é totalmente amoral. Ele possui apenas um instinto de auto-preservação, o que leva a uma necessidade de bem-estar próprio. Em suma, ele age de acordo com o que é mais benéfico para si, em cada determinado momento. Isto parece, de fato, ser um pensamento simplista e até óbvio. Óbvio, porque os próprios conceitos de moral, valores, ética e a própria definição de certo e errado, foram criados pelo ser humano. E, também por ele, têm sido passado, deturpado e alimentado a seus descendentes, através de suas próprias experiências e interpretações imperfeitas. De fato, o ser humano é uma criatura tão falha em sua essência, que me faz pensar (mais uma vez), qual o verdadeiro propósito de sua criação (não que eu aspire desvendar o mistério da Criação, pelo menos nesta vida). Mas creio já saber a resposta: a evolução. E tenho uma forte crença, teimosa, de que um dia chegaremos lá. Se não nessa, em outra vida. De qualquer forma, o ser humano não tem a capacidade e, muitas vezes, nem mesmo o interesse de se policiar dentro de suas próprias diretrizes, e agir coerentemente de acordo com aquilo que, ele próprio, definiu como certo, moral, ético ou justo. Em outras palavras, o ser humano não age de acordo com seus próprios conceitos de correção. Não faz algo porque está certo, nem tampouco deixa de fazê-lo porque está errado.

Mas então, o que policia o homem, o que rege sua vida e o coloca na direção certa de sua suposta evolução, e permite que viva em sociedade e harmonia com os demais seres humanos do planeta? O sentimento mais primitivo de todos, que é congênito e forjado em sua essência, junto com sua amoralidade: o medo.

O homem não tem a capacidade de discernir o certo do errado, não antes de ele próprio definir o que é isso. Mas ele é capaz de sentir. E o medo é um sentimento forte o suficiente para fazê-lo agir. O homem não rouba e não mata um semelhante, não porque é errado, ou imoral. Mas porque tem medo das consequências de infringir uma lei, que ele próprio criou para definir o que pode, ou não, ser feito. O duende berra: "Blasfêmia! Eu não roubo porque isso é errado! Sou honesto!" Calma, duende. Até você verá que é tudo uma questão de interpretação. Roubar um pão para sasciar a fome de um moribundo é justificável. Assim como matar em legítima defesa, para evitar a própria morte. Tudo é uma questão de ponto de vista, já que tudo foi criado e definido pelas próprias mentes que julgam e agem.

Assim, enquanto minha mente vagueia por esses pensamentos, eu, momentaneamente distraído, percebo que, ao ficar do lado de cá da faixa de pedestres para não trancar o cruzamento quando a luz tornar-se verde, permito que mais um motorista mal-educado entre na minha frente (pela terceira vez). Consequência: a essa altura do campeonato, os ânimos já estão tão alterados que, todos, de ambos os lados do cruzamento, decidem disputar, na força-bruta, as escassas vagas da via congestionada. Ué, mas não é errado, imoral e injusto? Agora não, já que o medo desapareceu: não existe ninguém fiscalizando e fazendo cumprir a lei (e punindo quem a desobedece). E aí, estamos de volta à nossa mais pura essência: a amoralidade e a necessidade do bem-estar próprio.

Então, estaremos perdidos? É o fim de tudo, mesmo antes de haver começado? Não. Como tudo nesta vida é contrabalançado por uma força maior, existe um outro sentimento humano, tão forte quanto o medo, e igualmente capaz de fazer o homem agir: o amor.

Por amor, o homem trabalha em excesso para sustentar uma família, deixa de alimentar a si próprio, de dormir. Põe sua própria vida em risco e, às vezes, a sacrifica. É capaz de colocar o bem-estar de outrem, acima de seu próprio. Toma decisões difíceis, torna-se altruísta, muda hábitos e se disciplina. O amor, se não oposto (como o velho clichê: amor e ódio), é complementar, equivalente, e tão motivador quanto o medo.

Mas o ser humano se utiliza do medo para policiar sua existência. Cria leis, deflagra punições. Cria castas e intimida seus subordinados. Para disciplinar uma criança, dá-se uma palmada, coloca-se de castigo. O medo irá condicioná-la. Nas empresas, incentiva-se mais por sanções do que por recompensas. As autoridades impõe controle, não por respeito, mas por medo das consequências adversas.

Há uma diferença sutil, entre as duas abordagens: o medo se impõe; o amor, é preciso conquistar. Mas algo me diz que, uma espécie que necessita fomentar um sentimento vil como o medo, e o usa para reger sua própria existência e evolução, além de justificar suas fraquezas e inaptidões, está fadada a definhar em sua própria amoralidade inóspita.

Seremos capazes de reverter o alicerce sob o qual construímos toda uma sociedade? O tempo dirá. Enquanto isso, sempre teremos opções: amor ou medo?

A honra que recebemos daqueles a quem tememos em nada nos honra.
-- Michel de Montaigne

Um comentário:

Erika Fraccaroli e Fabio Cesar de Mattos disse...

Fico feliz que minhas reflexões tenham "cutucado" você Nelson. Escrever é um dom, um dos quais você foi premiado. Mais importante que refletir sobre a vida é expor nossos pensamentos e os compartilhar com os que nos rodeiam. Muitas vezes é do que precisamos, de algumas palavras que toquem nossa alma, que nos confortem ou que nos acordem para a vida.

Beijo carinhoso.