quarta-feira, junho 24, 2009

Perda, Esperança e Vitória

   Caros leitores,

   Contarei agora uma história pessoal e verídica que já ocorreu (e vem ocorrendo) há algum tempo, mas que até hoje não tive a inspiração para compartilhar. Acredito ter chegado, finalmente, a hora.

   Perda

   Há cerca de um ano e meio tive uma enorme reviravolta em minha vida. Fui inesperadamente acometido por uma doença extremamente rara e séria, chamada Síndrome de Susac. Uma doença auto-imune recente (descoberta em 1978) com menos de 200 casos no mundo inteiro. A doença afeta em sua grande maioria as mulheres, sendo eu, oficialmente, o nono (9º) homem do mundo a contraí-la.
   Esta doença é principalmente disparada por stress e causa uma vasculite sistêmica grave. Ataca primariamente a retina, cóclea e sistema nervoso central (SNC). Cada um dos poucos casos registrados até hoje tem um perfil bastante diferente e peculiar para cada indivíduo, tornando a doença, além de tudo, de difícil diagnóstico.
   No meu caso específico, tive alguma degradação na visão (alteração na visão periférica, sensação de ofuscamento, etc.) Tive sérios distúrbios no SNC, incluindo perda de coordenação motora, equilíbrio, memória, raciocínio, concentração e habilidade de leitura. E finalmente, minhas cócleas foram afetadas de tal maneira que houve morte de praticamente todas as células receptoras, resultando na perda total da audição (perda neurosensorial bilateral definitiva).
   Como pensador, perdi a habilidade de raciocinar propriamente. Minha condição me impossibilitava de sequer realizar operações aritméticas insignificantes, ou exercícios básicos de linguagem, como soletrar palavras comuns.
   Como escritor, mal conseguia ler coerentemente um texto, quanto mais desenvolver e escrever idéias.
   Como músico, não conseguia ouvir sequer minha própria voz, barulhos do ambiente, sons da natureza, quanto mais as notas musicais, timbres, acordes e melodias que tanto me deram prazer no passado.
   Adentrei um mundo assustadoramente silencioso, introspectivo e incerto.

   Esperança

   Após a estabilização de minha condição, durante dois meses de internação em quatro hospitais diferentes, doses maciças de medicamentos, incontáveis exames e intermináveis doses de preocupação, não só minha mas também (e talvez, principalmente) de meus familiares e amigos, deu-se um incansável processo de recuperação. Através de exaustivo e contínuo treino (físico e mental), muita determinação, paciência, e uma boa dose de força de vontade, que vêm durando todo este último ano e meio, quase todos estes obstáculos foram transpostos.
   Houve total recuperação da retina e hoje minha visão encontra-se normal. Meu poder de raciocínio foi gradativamente retornando até a total recuperação. O mesmo com minha coordenação motora, habilidade de concentração e leitura, e praticamente todos os lapsos de memória. Meu equilíbrio, apesar de ainda não estar cem por cento, recuperou-se de tal forma que tornou-se imperceptível às demais pessoas qualquer degradação aparente.
   Infelizmente, a morte das células receptoras no interior das cócleas não é reversível naturalmente. De forma que ainda me encontro no introspectivo mundo do silêncio. Contudo, fui capaz de encontrar paz nesta nova condição. Tornei-me extremamente observador, meus sentidos tátil, olfativo e visual apuraram-se imensamente. Encontrei prazer em outras áreas e atividades. Tenho aprendido muito sobre mim mesmo e sobre as pessoas, através de um ponto de vista que jamais tivera acesso. Aprendi o verdadeiro valor da família e dos verdadeiros amigos.
   E aprendi que a vida é muito mais do que, normalmente, nos damos conta.

   Vitória

   Minha vitória veio de várias formas. Minha paz interior tem sido a maior e mais significante delas. A recuperação da minha independência e auto-confiança, e a não-perda de minha personalidade (uma das coisas que mais me preocupava) também contaram bastante. Contudo, a maior vitória veio através de uma notícia totalmente inesperada e repentina.
   Já faz um ano que venho levando o processo para conseguir a cirurgia do implante coclear através do SUS (Serviço Único de Saúde). Venho também, paralelamente, tentando o mesmo processo através do convênio de saúde que, apesar de serem obrigados por lei a cobrir o procedimento, muitas vezes demoram para se manifestar e, em alguns casos, é necessário recorrer ao judiciário. Minha maior aposta é que a cirurgia fosse aprovada pelo SUS, provavelmente no final deste ano.
   Vale uma explicação: Implante Coclear (IC) é uma tecnologia relativamente recente, que vem se desenvolvendo de maneira impressionante nos últimos anos, e que para alguns tipos de deficiência auditiva (o meu caso) é a única solução possível para se obter alguma melhora. Tipicamente, obtem-se bons resultados, variando muito de pessoa para pessoa, já que existem inúmeras variáveis envolvidas no processo.
   Agora, no início deste mês de junho, tive a inesperada notícia que meu plano de saúde havia aprovado a cirurgia. Fui a Porto Alegre realizar os exames e avaliações pré-operatórias, em um processo que aconteceu muito mais rapidamente do que eu esperava. Feito isso, ficou determinado que sou um ótimo candidato ao IC e minha cirurgia já foi marcada para, pasmem, dia 27 próximo!
   Esta então, será minha mais gratificante vitória. A retomada do poder de comunicação e interação com as pessoas, de forma muito mais satisfatória e, principalmente, a perspectiva de poder finalmente retornar ao mundo da música. De tudo o que me foi afetado, desde o início, essa talvez tenha sido minha mais frustrante perda: meu exílio involuntário do mundo musical.
   Aí o duende dirá: mas por que então falar de uma vitória que ainda nem sequer aconteceu?
Respondo, meu caro. Não preciso saber do resultado, pois já tenho a certeza absoluta de que a recuperação de minha audição, embora que certamente não seja a volta exata do que um dia foi, será plenamente satisfatória para minhas expectativas e devolverá, com certeza, uma de minhas maiores paixões: a música.
   Depois de tudo o que aconteceu, todas as provações e aprendizado, isso já é, sim, a Vitória.